Olho distraído alguma besteira na tela do celular, meu companheiro forçado desde março de 2020. Lá fora, a cidade, onde não piso há muito, ruge como se fossem tempos normais. De repente, uma bela voz feminina na televisão faz ecoar um dos versos mais celebrados do cancioneiro nacional:
Viver
E não ter a vergonha de ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser um eterno aprendiz
Olho para a tela maior e vejo uma montagem bonita. Um rapaz abraça uma idosa, ambos separados por um plástico protetor. Pessoas de máscara, ruas vazias, um retrato marqueteiro de nosso tempo. E a moça cantando. O refrão acaba e ela, com ousadia enervante, acrescenta uma palavra nova à letra: o nome de um aplicativo de entrega de comida. Fico enfurecido, mas não me surpreendo. A mesma coisa me acometeu quando ouvi E Vamos à Luta cantada por Iza — que não tem culpa na coisa, todo mundo tem que ganhar seu filão — no comercial de uma faculdade particular que, após a reforma trabalhista, demitiu professores em massa.
Gonzaguinha lançou O Que É, O Que É? em 1982. Desde então, publicitários a usam como um atalho pouco criativo para falar de esperança. Eu sei que a vida devia ser bem melhor: e será! O primeiro passo para isso é levar todos os donos de grandes agências de publicidade a julgamento na corte de Haia por crimes contra a canção popular brasileira.
Veja bem, mau uso da canção não é exclusividade do filho do Rei do Baião. Já perdi a conta das vezes em que ouvi Happy Together, uma das músicas mais tristes a abordar o amor platônico, em casamentos. Baden Powell quebra seu violão em algum lugar por aí toda vez que um estudante da FFLCH saca seis cordas puídas para tocar (mal) Canto de Ossanha na tentativa de encantar sua companheira de classe: uma mocinha de saia estampada, chinela rasteirinha e tatuagem de mandala.
É que tem uma coisa profundamente perniciosa sobre o uso dessa música do Gonzaguinha. Para além do clichê, há um desrespeito com a memória de um dos cantores mais combativos e progressistas de seu tempo. É o cara que escreveu Comportamento Geral, um comentário mordaz sobre tanto um povo que abaixa a cabeça ou bate palma para o absurdo quanto acerca de um estado autoritário e domesticador que só faz privilegiar os privilegiados históricos de seu país. A música lhe rendeu acusações de terrorismo pelo júri do Programa Flávio Cavalcanti. É o sujeito que escreveu a dançante Lindo Lago de Amor, mas fez sangrar feito peixeira afiada em Galope, com versos como Deixa essa criança chorar/Não adianta cara feia/Nem adianta se zangar/Que ela só vai parar quando essa fome passar.
Em sua tese de doutorado sobre o cantor, a pesquisadora Daniella Bertocchi ressalta a coerência de Gonzaguinha ao longo da carreira, mesmo em sua fase mais comercial, durante os anos 1980. Coerente a ponto de ser, em alguma medida, escanteado do posto de um dos compositores e letristas de maior respeito da música popular brasileira. O texto de Bertocchi traz uma citação dele, dada em entrevista à finada TV Mulher, que eu carrego no peito: “Eu sou muito complicado, bastante complicado, porque eu mantenho minha posição há anos. Sem fazer força, porque eu acho que coerência é atitude de viver, porque eu acho que não devo ter medo de errar”.
É a santa coerência que me tira do sério quando vejo uma empresa multimilionária, que não oferece nenhum tipo de auxílio ou equipamento de proteção a seus entregadores, usar uma pandemia como objeto romantizado para vender mais hambúrguer. No dos outros é refresco. Houve tentativas de obrigar as companhias do ramo a fornecerem esse tipo de material a seus funcionários, mas para isso existe o Partido Novo — um braço político do empresariado, disposto a defender todo tipo de sandice e acinte contra a classe trabalhadora em nome de um delirium tremens chamado estado mínimo. Não é preciso pesquisar muito para descobrir que o partido de cor laranja, senhora escolha!, barrou a votação na última sessão do ano passado.
Seu maior erro, Gonzaguinha, foi ter entrado naquele carro, mas não tinha como você saber. Gosto de imaginar que, se estivesse entre nós, desfilaria a sua cara fechada pra cima de quem faz esse tremendo mau uso da sua obra. Talvez tenha sido pra melhor, tem muita coisa acontecendo por aqui, pior do que sua música tocar em propaganda de aplicativo ou faculdade particular.